quarta-feira, 29 de julho de 2009

Respeitável Cabide...

Quatro meninos em cena. O mais velho é palhaço-mímico. A celebridade na ribalta não tem mais que 19 anos. É brilhante a ponto de ocupar inteiramente o palco com uma máquina fotográfica e três crianças. É formidável a ponto de ofuscar os espectadores ávidos pela confissão pública de que sua própria solidão não é apenas tolerável, mas, com alguma habilidade e sorte, pode dar bons frutos. A tarefa dele é mostrar que a instabilidade deve ser apreciada e experimentada no ato. Vivencia laços carnavalescos com a platéia. É sedutor como o jogo de luzes que faz o espetáculo: ambos são necessários para que os indivíduos sejam postos à vista do público.
O palhaço artista fala com o corpo. Faz acontecer o inconcebível: o pequeno milagre de evocar a experiência geral. E todos riem a alegria de fazer parte sem o desconforto do compromisso. A união é sentida e vivida como se fosse real, mas não é contaminada pela dureza, inelasticidade e imunidade ao desejo individual, atributo da liquidez urbana contemporânea, efêmera, extraterritorial. O menino palhaço é ídolo feito sob encomenda para uma vida fatiada em episódios. Segue o padrão de impacto visual máximo e obsolescência instantânea. Não dá para levar para casa e consumir na rotina diária.
O palhaço-mímico é a alma da comunidade-cabide do circo. Nela penduramos nossas angústias na entrada por três reais,o preço da pipoca. E ainda podemos registrar a efeméride, nossa identidade antes e depois do retrato. É a catarse coletiva. A libertação do labirinto. É Dionísio coabitando a psique, tentando ser substantivo na modernidade diluída. É a alocação do gozo em separado. É a experimentação institucional do compartilhamento fraterno, uma espécie de seguro comunitário contra erros e desventuras, riscos inseparáveis da vida individual. Enquanto anônimos nas cadeiras coletivas vamos garantindo o direito à diferença reconhecida e a continuidade de ser diferente sem temor a reprimendas, sem ter que escavar trincheiras, sem a entrada de intrusos, sem a saída dos de dentro antes que as cortinas se fechem.
O circo é, há cinco mil anos, uma comunidade que resiste. Estende sua lona circular pelas cidades enquadrando formas narrativas antigas. A força dos números a engolir a dramaturgia. Os gestos coreografados dos acrobatas, trapezistas, saltimbancos, contorcionistas, bailarinos exibem sem medo a falsa dignidade que incorpora o espectador ao espetáculo. O público vira celebridade, se projeta na segurança do artista, longe das dores do cansaço, da repetição, da doença e da fome.
Até 1977 o saber do circo só era transmitido nos círculos familiares. Por intermédio de um palhaço pantomímico a identidade comunitária mudou. Abelardo Pinto, o Piolim, criou a primeira escola de circo em São Paulo. Com a criação das escolas, a iniciação dos novos foi apontando duas alternativas de difícil escolha: assimilar ou perecer. A primeira significava a aniquilação da diferença. A segunda, a aniquilação do diferente. Para continuar a levar a massa ao circo, sem animais desde 2003, depois de 115 anos de domesticação, era preciso investir fortemente nos números. E artistas estrangeiros foram despojados de alteridade. Acabaram dissolvidos de sua idiossincrasia no composto uniforme da identidade circense mundial. No Canadá e no Brasil, porém, não menos vibrante.
É o que pensam os russos Ludmila e Eugênio Smirnov, mágicos, no circo brasileiro há 14 anos que também já trabalharam no Canadá. Eles se apresentam com os três filhos, dois deles também russos, Natasha, 23 anos, Serguei, 19. Os quatro, a pequena Kátia com sete anos e outros cinco rapazes e moças da Fundação Cultural Beto Carrero World, a segunda escola de circo do país, mantêm a atenção do público por quase uma hora.
Eugênio acredita que o que ensina aos filhos também é de acesso a todos os outros 250 alunos uma vez que ensaiam as apresentações da noite durante as aulas. Eugênio aprendeu a fazer mágica no Circo de Moscou em pleno regime comunista. Era funcionário do governo, tinha carteira de artista que daria direito a uma velhice confortável. Ludmila, de grandes olhos verdes, muito emotiva, falando sempre de braços dados com um dos filhos, era integrante de uma família de trapezistas. Ela e Eugênio se conheceram no circo, se apaixonaram, casaram e com o início da democratização da antiga Rússia em plena era Yeltsin, 1993, tiveram que integrar companhias de outros países para continuar a ganhar a vida com a profissão.
- Ainda dá para surpreender com números que têm séculos! - garante Eugênio. – Depende da técnica do artista e da sua mais profunda capacidade de interagir com a platéia.
Ludmila, mais de quarenta anos, aparência de menos de trinta, atribui o sucesso dos antigos números à espontaneidade dos latinos:
- Ninguém tem vergonha de participar, de dizer que precisa ser surpreendido, de rir com o artista ou com o riso do que está ao lado. Isso compensa a falta de reconhecimento financeiro!
Dedé Santana, 40 anos de carreira como humorista, sobrinho de Anquito, um dos maiores comediantes de circo da história nacional que teve Grande Otelo, Oscarito e o palhaço Piolim concorda:
- O circo tenta se modernizar com recursos de cena computadorizados, mas a platéia aplaude entusiasmada números simples como os que o Piolim fazia imitando Charles Chaplin, no início do século XIX. Então, o Comando Maluco é um pouco isso; rir das coisas simples como a ingenuidade do Bananinha que tem medo do General.
A disciplina quase militar, o uso de uniformes, o rufar de tambores, o palhaço e a paródia do recruta já ensaiada nas primeiras tentativas da práxis circense moderna por volta de 1770. No entanto, 237 anos passados, em Joinville, a platéia de uma quinta-feira na maioria donas-de-casa, aposentados e até um policial militar, ratifica a receita secular:
- Baixa o estresse; a gente esquece de filho, de marido, das contas chegando, tudo! – afirma Alaírdes da Maia, 38 anos, dona-de-casa.
- Venho para rir; rio muito e em casa, depois, a conversa rola solta! – Confessa Aldemar Castro, 44 anos, policial militar.
- Quando era moço, gostava de ver os números para poder imitar quando chegava em casa. Queria fazer igual! – revela, descontraído, Joselino Ramos, 66 anos, aposentado.
Na ‘comunidade estética’ de Kant, “o vínculo procurado não deve ser vinculante para seus fundadores”. Ou metaforicamente, para Weber, “o que é procurado é um manto diáfano, não uma jaula de ferro” de onde todos podem sair quando bem entenderem sem compromisso de voltar. Não há laços, apenas temporaneidade, necessidade.
A necessidade da comunidade estética, cabide para a crise da identidade dos sujeitos cosmopolitas, alimenta a indústria do entretenimento. Tal qual o vagabundo de chapéu-coco, bengala, bigodinho e sapatos enormes, ícone vinculante do circo ao cinema no início do século XIX chamado Carlitos. No entanto, é discutível se essas ‘comunidades-cabide’, como insiste Zygmunt Bauman, “ofereçam o que se espera delas, na medida em que uma vez desfeita a comunidade original, não pode ser recomposta. Se porventura ressurgir das cinzas de si mesma como a fênix, não será de forma preservada na memória, mas invocada por uma imaginação cotidianamente assolada pela insegurança perpétua”.
É certo que apesar do uso excessivo da palavra ‘comunidade’, homens e mulheres procuram por grupos a que poderiam pertencer num mundo em que tudo se move e se desloca. Mais precisamente ainda, “quando a comunidade entra em colapso, a identidade é reinventada”, afirmam vozes dissonantes. Pois, que seja assim, mas que tenha cheiro de pipoca, maçã caramelada e serragem do picadeiro...

Texto escrito em julho de 2007 para aula de Redação Jornalística VI do Prof. Jacques Mick no curso de Jornalismo do IELUSC